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Este novo livro de Raimundo Carrero é mais do que um romance: é na verdade um grave desafio. Desafio, aliás, que o autor faz a si mesmo e ao leitor. É também uma provocação, que se realiza numa única frase — “o que faz uma mulher apontando o revólver para o marido?” — e que causa inquietação, procura, ansiedade. Que se desdobra, ecoa e investiga. Que surpreende. Que se esvai como um corte de navalha no pescoço.
Um enredo simples e decisivo: após a vibrante relação sexual da noite sombria e torturante, Alice decide matar o marido com um só tiro, para que não tenha de suportar depois a tortura de um doente atirado no quarto. Vestida num robe verde, que desenha seu corpo belo e sensual, senta-se na poltrona, o revólver na mão, e espera que ele dur-ma. Leonardo, o leão na espreita, percebe a decisão de Alice e finge dormir. Não dorme. Os dois cochi-lam. A madrugada avança. Na penumbra, um negro toca sax em sons afiados de agonia e pranto.
A partir daí o escritor pernambucano estabelece o jogo de uma revolução literária, mudando a ordem das frases, investindo na pulsação narrativa, dando à pontuação um caráter de personagem. Os sinais gráficos têm, portanto, humanidade: reticências pertencem a Leonardo, interrogações e vírgulas são de Alice, dois pontos integram os dois. Que se desdobram depois em metáforas, um jogo permanente em toda esta orquestração. Por isso os personagens são transformados em escorpiões e em tarântulas, num envolvimento erótico de muito prazer. E gozo.
É preciso ressaltar que em Carrero a morte é ao mesmo tempo dor e alegria, uma festa de quem se despede do mundo mas que se integra definitivamente ao mistério, ao mágico, ao atormentador. E o tormento no autor de Ao redor do escorpião... uma tarântula? traz a sensação de um prazer que jamais se esgota.
Neste livro, pela capacidade de unir técnica e leitura agradável, o pernambucano se alia ao que há de mais revolucionário na literatura brasileira, ao lado de Guimarães Rosa, Osman Lins e Autran Dourado. Com certeza, um autor definitivo.
Raimundo Carrero nasceu em Salgueiro, Pernambuco. Publicou, entre outros, Somos pedras que se consomem (Grande Prêmio da Crítica – APCA, 1996 e Prêmio Machado de Assis da Biblioteca Nacional, 1996); As sombrias ruínas da alma (Prêmio Jabuti, 2000) e Sombra severa, 2001, todos pela Iluminuras.