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Em algum momento de sua infância, exatamente quando deixa de babar e começa a falar, Virgilio Piñera (Cárdenas, 1912 - Havana, 1979) descobre que é pobre, homossexual e que gosta da arte. Sobre estas três descobertas precoces, das quais o próprio Piñera afirma que não poderá livrar-se jamais, Teresa Cristófani Barreto organiza Calentura, sorte de biografia apócrifa sobre o escritor cubano. Sem respeitar a linearidade temporal nem a fidelidade aos fatos, e descartando a precisão cronológica — talvez os atributos imprescindíveis de uma biografia clássica — Calentura narra a trajetória de Piñera, enquanto se interroga sobre o justo modo de dar conta da vida de um escritor, sobre a possibilidade ou impossibilidade de levar a cabo essa tarefa e, inclusive, sobre a existência de alguma verdade a ser revelada por uma biografia.
Escrito em uma época saturada pela publicação de biografias autorizadas e não autorizadas, que se esbaldam nos detalhes escabrosos de suas revelações, e se sustentam na certeza da existência de um sujeito sem fissuras e nas causalidades que fazem ao relato da vida, Cristófani Barreto aposta e se arrisca por outro caminho, no qual não há uma verdade prévia ao dito ou ao escrito, no qual os limites entre vida e literatura são permeáveis e, fundamentalmente, no qual se pode seguir uma política da língua e da escritura, a de Piñera, em primeiro lugar, mas também a da própria crítica. Falo de reescritura e de tradução, as duas operações centrais que o livro leva a cabo, porque parte de duas únicas certezas, que traduzir é um modo de escrever literatura apócrifa e que a literatura é um mexerico colossal.
É assim, então, que entre a erudição e a fábula, Virgilio Piñera, uma das figuras chaves da literatura cubana do século XX, libera-se do nome próprio e passa a chamar-se Oscar P. cobre-se com o nome de um de seus personagens de ficção, num procedimento que, com algumas variantes, repete-se com outros escritores importantes para o seguimento desta vida e deste texto, quer se trate de José Lezama Lima, de Witold Gombrowicz — cujo romance Ferdydurke traduziu durante os anos em que ambos conviveram em Buenos Aires — ou de Antón Arrufat, conhecido curador de sua obra póstuma. E é por essas mesmas duas certezas que, às vezes, Calentura se desdobra na tradução literal de alguns textos de Piñera e, outras, em sua reescritura. Também são elas que estão na base das diferentes versões e registros que contam a vida do cubano, seja por meio de fragmentos de sua obra de ficção, de "La vida tal cual" — seu breve relato autobiográfico de comentários extraidos de textos de outros críticos, ou recolhidos nos fundos de qualquer campo literário, ou nos editos governamentais que regeram durante um longo tempo a vida deste homossexual sob a Revolução.
Na mescla de vozes e versões, na exibição da impossibilidade de narrar com precisão a vida de Virgilio Piñera, Cristófani Barreto desdobra, no entanto, um saber, que o modo adequado de ser fiel a um escritor não reside na veracidade dos fatos que a biografia conta, mas sim na fidelidade a sua voz. E aqui reside um dos acertos mais fortes deste texto, no qual reconhecemos o humor e a impertinência piñerianas.
Adriana Kanzepolsky