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A
impossibilidade de determinação é talvez o que melhor caracteriza a (anti)obra
Como é de Samuel Beckett. Romance que não tem nada de romanesco — a não ser a
referência ao anti-herói picaresco —, drama apocalíptico irrepresentável em
mais de um sentido e fim enfático de qualquer possibilidade de “Eu” lírico,
trata-se, enfim, de uma obra “como (ela) é”: o mínimo possível, aridez
narrativa e anímica, que de tanta “falta” pode ser também quase tudo. Sua
leitura dispara o aguilhão hermenêutico que nunca encontra descanso na
comodidade do “já entendi”. Trata-se aqui de “menos poesia”, no sentido positivo
que Novalis atribuía a esta expressão. O máximo deve ser atingido via
autolimitação.
“Monólogo”
em moto perpétuo, seu anti protagonista — espécie de sobrevivente da hecatombe
final — narra retrospectivamente sua “vida” antes, com e depois de Pim. Esta
tripla temporalidade arquetípica, assim como a própria identidade do
anti protagonista (sem nome), são postas em questão todo o tempo. Fragmentos de
vida “de cima”, “na luz” (“inventados relembrados”), também penetram neste
porão “pós-tudo” problematizando ainda mais as fronteiras. A desconstrução da
narração segue uma estratégia de mise en abyme: o tempo pontual do presente da
narrativa torna-se mais concentrado na medida em que é sugerido que tudo não
passa de uma “citação”. O “eu-narrador” conta “como ouço”. Ele é perseguido por
uma voz “quaqua”: antivoz, que ao descrever o som de seu silêncio animaliza-o.
Seus pedaços de vida são citados diante do tribunal da literatura que não
possui juiz ou Deus e não garante salvação.
O
leitor tem como material escritural uma sequência de blocos sem pontuação e
separados por espaços brancos. A leitura se dá via ritmo da prosa (porosa). O
texto tem algo de corpóreo, performático. A tentação de ler de modo randômico é
grande e não deve ser contida, pois no texto, a rigor, não há tempo, assim como
praticamente não há deslocamento espacial. A narrativa, que sempre se deu na
linha horizontal e tendencialmente homogênea do tempo, encontra-se agora
esmagada sob o peso de uma catástrofe que lançou os restos humanos em um
pântano (a data 08/05 aparece aqui não por acaso: lembremos do ano 1945...).
Eles caminham na lama com sacos amarrados ao pescoço e procuram encontros
sadomasoquistas: única fonte de “bons momentos”.
O
“Eu” só existe aqui no seu estado de negação e autoaniquilamento: é como se
Beckett encenasse suas lembranças intrauterinas e as projetasse em um mundo
pós-bomba atômica.
Podemos
dizer que a escritura de Como é reatualiza Babel e sua confusão e nos lança no
pós-simbólico abjeto pelas portas dos fundos. Não só (o inferno de) Dante e
Kafka são referências aqui, a Bíblia também ecoa em Como é: este texto é uma
espécie de “Eclesiastes” pós religião, assim como o seu universo fechado
constitui um paradoxal e aporético gnosticismo ateu.
A
autoironia não é menos cortante: caminha-se o tempo todo “da esquerda para a
direita”, como na nossa escrita alfabética ... Também o corpo, a pele, torna-se
superfície de escritura nos encontros na lama. Como em “A colônia penal”, de
Kafka, as costas transformam-se em local de inscrição de “letras floreadas” que
aqui são cavadas com as unhas. Nunca a ideia da escritura como instância
inconsciente foi tão bem encenada como nestas páginas. No “tohu-bohu” (caos
originário e terminal) da lama, não apenas excrementos e vômito se misturam,
mas o corpo é torturado, perfurado, e ânus e ouvidos são confundidos. Não há
mais limites. As “grandes categorias” deram lugar aos fluídos que corpos
esfarrapados excretam.
Márcio Seligmann-Silva
Autor(a) | Samuel Beckett |
Tradutor(a) | Ana Helena Souza |
Nº de páginas | 192 |
ISBN | 978-85-7321-185-6 |
Formato | 21x14 cm |
Peso | 247 g |