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NO LUGAR QUE NÃO SE RESPIRA
um livro feito de água
é perfeito
porque não se pode
guardar
suas páginas líquidas
translúcidas
vêm dos anfíbios-hieróglifos que dizem não
à luz
não hesitam ao eterno eclipse
de um céu aquoso
de lá vêm as imagens do livro
que não é um livro de arte
um livro feito de água não se quer eterno
(sequer existe)
mas um ser vivo (um peixe é um livro)
na diversidade que adensa a unidade
no lugar que não se respira
ar
Corpo sutil: o título deste livro evoca imediatamente a fisiologia tântrica, com sua distinção entre o corpo "grosseiro", composto de pele, músculos, vísceras etc., que é o que normalmente chamamos "corpo", e o corpo "sutil", o corpo perfeito, o microcosmo, do qual o corpo grosseiro não passa de uma cópia defeituosa.
De uma perspectiva inteiramente diferente, o adjetivo "sutil", quando tomado à maneira dos epítetos homéricos, que exprimem uma característica essencial do sujeito a que se referem, chama a atenção para a sutileza do corpo, de todo corpo: chama a atenção para o fato de que todo corpo é infinitamente mais sutil do que o supõe o senso comum.
Seja como for, a falta de artigo definido ou indefinido nesse título sugere ser o corpo sutil em questão, em primeiro lugar, o próprio livro, o próprio corpus de poemas intitulado Corpo sutil: o que parece apontar para uma poética que leva a sério a materialidade do poema, já que o toma como corpo, ainda que sutil.
Sendo o livro dividido em três partes, é na sua parte central (intitulada "Estilo da boca”) que essa materialidade se manifesta com maior evidência, em poemas fonopaicos como "Baka", “Tupi tu és", "Wãwã" etc., cuja sonoridade singular resulta da imbricação de fragmentos temáticos, palavras e ritmos pertencentes a culturas orais primárias e fragmentos temáticos, palavras e ritmos (e arritmias) contemporâneos. No nível semântico, o equilíbrio precário, porém controlado, entre tradição e inovação, e entre Contemporaneidade e extemporaneidade, provoca, no nosso mundo de primitivismos desencantados e futurismos ultrapassados, uma desconcertante porém estimulante sensação de estranhamento justamente onde seria de se esperar acolhimento: ou de acolhimento, onde seria de se esperar estranhamento. Pois bem, a meu ver, essa parte central funciona como o eixo do livro. Ela é o ponto em que se encontram e fundem a primeira e a terceira partes dele; ou então, de um outro ponto de vista, é o ponto em que se dá a fissão que produz cada uma dessas duas partes: o ponto de fusão/fissão do livro.
"Aguafuerte", a terceira parte, culminando no belo poema "Sete vidas para o poeta” e no quase-manifesto "Tráfico de palavras", é a mais logopaica, a mais reflexiva (embora não sem ironia: leia-se "Rumble fish"), a mais política, a mais metalinguística do livro.
A primeira parte - "No lugar que não se respira" é o oposto. A primeira palavra do título do primeiro poema dessa parte "Zaúm no romper do dique" já indica que, aqui, não estamos lidando com a linguagem no seu sentido corriqueiro. Cunhada pelo poeta russo Khlebnikov, a expressão zaúm significa algo como "trans-mente", "trans-intelecto" ou "trans-sentido". Evidentemente, não se trata, para Ricardo Corona, de uma retomada da utopia linguístico-poética de Khlebnikov, mas, sob o signo dessa utopia, de um experimento poético que se Situa aquém ou além do uso convencional da linguagem e da consequente categorização, compartimentalização e reificação instrumental do mundo. Por isso rompe-se o dique: por isso é a água, o elemento do fluxo, do movimento e da mudança, que domina essa parte do livro, que exalta, entre todos os animais, os anfíbios, que não pertencem a nenhum reino particular, mas se encontram em casa em todos; ou em nenhum. Apropriadamente, essa parte culmina no que talvez seja o mais belo poema de um livro de muitos poemas belos: "No lugar que não se respira".
Contra o espirito grosseiro da linguagem utilitária, o Corpo Sutil da linguagem poética: eis um livro que faz jus ao seu titulo.
Antonio Cicero