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Para quem conhece um pouco da obra de Franz Kafka não surpreende a afirmativa que ele lerá neste livro dos sonhos: “Escrever uma autobiografia me daria grande prazer, pois seria tão fácil quanto anotar sonhos.” Se autobiografia e escritura dos sonhos (“onirografia”) se confundem no grande autor de Praga, esta escritura é também para ele desde sempre “literatura”. Daí lermos também que “visto da perspectiva da literatura, meu destino é muito simples. O impulso de representar minha vida onírica”.
Os ecos da “obra” kafkiana são inúmeros neste precioso volume: a figura obsessiva do pai, mulheres com corpos insinuantes, cartas, lutas, metamorfoses, porteiros gigantes, sereias, dentes (!), cenas asquerosas, máquinas que picam pessoas. Todos estes temas caros aos seus romances, novelas e fragmentos surgem aqui a partir da tela de seus sonhos.
Personagens e situações de sua literatura são oníricos, seus sonhos são encenações literárias: é impossível dizer onde um começa e o outro termina. Se a sua “obra” se confunde com sua economia onírica é porque Kafka reconheceu que existe apenas um “limite tênue entre a vida cotidiana e o terror aparentemente mais real” que o universo dos sonhos nos revela. Ele é o autor deste “mais real”, apresenta-o seguindo a lei (freudiana também) que reconhece no sonho algo “que não pode ser comunicado porque é intangível, e pelo mesmo motivo exige ser comunicado”. Trata-se nestas suas anotações de sonhos de uma tradução necessária e impossível, a qual denominamos de Literatura, ao menos desde Kafka.
O arado que corta, neste autor, tanto sua vida de escritor como seu sono, confunde uma fronteira com a outra. Se para ele “nem o sono nem o despertar” são “verdadeiros”, é porque ao invés de “dormir” ele está constantemente povoado por sonhos: “só sonhos nada de sono”, ele anota em seus diários (melhor dizendo: noitários!). O “material resistente” dos sonhos, sua supernitidez (e realidade), não só o impedia de “dormir”, mas também rompia os limites entre a noite e o dia, o corpóreo e o simbólico.
O tradutor destes “sonhos” de Kafka, Ricardo F. Henrique, já é conhecido do público leitor por seu trabalho de tradução dos contos sinistros de E.T.A. Hoffmann; trata-se, portanto, de um tradutor fiel a uma linha da literatura que explora, com ironia, o onírico- real terrificante. Esta literatura é tecida a partir de sensações e emoções psíquicas profundas.
No sonho, o corpo se manifesta como um arquivo de momentos vividos que se inscreveram na nossa memória de um modo ao mesmo tempo mais forte e que não permite sua leitura fácil, no registro da vigília. Tratase de uma escritura truncada que o sonho duplica, dentro da sua lógica escritural e imagética. Em um de seus sonhos, Kafka escreve que “senti fechaduras no corpo inteiro”: ele sabe que cada ponto de seu corpo e da superfície onírica torna-se a porta de entrada para este arquivo. Ele não por acaso sonha constantemente com letras, cartas, pessoas lendo, com um senhor chamado Schreiber (Escritor) e com traduções. Refletindo sobre esta questão, ele anotou: “Há gente que flutua agarrado num traço a lápis. Flutua? Um afogado sonhando com salvação.” Na verdade, em Kafka, a salvação é a própria escritura ou seja, como aprendemos lendo este volume, é a sua “onirografia”.
Márcio Seligmann-Silva