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Como si Raduan Nassar – esse filho de libaneses que fez poesia do romance – fosse recriado na procacidade do vidrinho do argentino Luis Gusmán, os fragmentos de Vertigens despejam as suas imagens a partir de uma erótica que mama de vários leites estrangeiros e, centralmente, da poesia como estrangeira da língua, ou da poesia entendida como exercício de “exílio” da prosa. O resultado: um português gozosamente inventado e, portanto, desencaixado de todo imaginário de correção e regionalização, dúctil para acompanhar a fluência de cenas de uma corporalidade fugidia e nua. Poderíamos nos perguntar se, em Vertigens, os corpos são a língua (puro imaginário) e os corpos habitados pelo desejo a poesia, mas a vertigem está aqui precisamente na nunca tornada ilusão de movimento, na imobilidade de um corpo que vê-se, contudo, sacudido pelo movimento, tropo, da metáfora. Então: nada de respostas, nada (o quase nada) de enredo ou de intrigas. A sucessão de instantâneas, os veintinove “pedaços” que compõem este livro, bem poderão conformar uma fita (caprichosamente numerada) mas não irão conformar nenhum filme, nenhuma história, senão mais bem a reminiscência onírica de restos de historias sobre as quais o narrador arrisca – por momentos – possibilidades de reflexão. Nesse atravessar, descobrimos sim, algumas obsessões: a mulher, as mulheres, a escrita, as escritas, a língua, as línguas e, sintomaticamente, o leite (na sua dupla conotação – tão riopratense – de semente e de nutriente); isto tudo em espaços fronteiriços, vislumbres de cidades e de bordas da mata, quartos de hotel barato pelos que cruzam personagens nada prototípicos e condenados sempre ao olho cru de um narrador/demiurgo eminentemente visual e voyeur; um narrador que longe de todo lirismo melancólico parece cultuar a felicidade de se travestir em flaneur de seu próprio e marginal aleph. Fita e não filme, Vertigens opera então, nas caminhadas desse olho algo reflexivo, certa persistência, um ritornello pelo qual o antropofágico final poderia se colar ao inicio, como se nada finalmente tivesse acontecido e a instantaneidade da imagem ganhasse da progressão da prosa, pois sempre houve aqui menos uma amalgama que uma luta amorosa, o impossível acasalamento ou copula do corpo e da letra, impossibilidade que impulsiona o desejo e que convoca não só (algo neobarrocamente) os materiais escorregadios (lesma, salivas, geleias) que neste percurso (ao gosto do leitor) vamos tocando, mas principalmente a própria língua, fluida e aberta a um dizer poético do mundo.
Pablo Gasparini
Professor de literatura
hispano-americana da FFLCH-USP
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