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Em algumas poucas décadas, um computador portátil poderá superar um cérebro humano e, pouco depois, revelar-se mais poderoso que a soma de todos os bilhões de cérebros do planeta. Mesmo agora, porém, a inteligência artificial já está por toda parte e controla parte relevante da vida cotidiana, sem que as pessoas percebam. Algoritmos estipulam a pena de condenados, compram ações na bolsa e fazem diagnósticos médicos. O que significa isso?
Cada cultura, como a da palavra impressa em papel, conta uma história própria, tem um sentido específico. Este livro investiga a narrativa da cultura computacional, a eCultura, em um ensaio que reúne ciência, mito e arte como lugares de residência de certezas e desejos da humanidade desde Homero, quando já se sonhava com o que agora está entre nós.
É uma longa, fascinante aventura humana que nunca perdeu o objetivo de ter na Máquina sua aliada perfeita. A cultura computacional, hoje, pode garantir essa utopia insuperável — ou o Grande Desastre.
Este livro propõe um inovador modelo de leitura da eCultura e lê-se como um envolvente relato sobre o presente e o futuro próximo.
O sonho de ter um aparato, um dispositivo — a Máquina — que faça por conta própria tudo que quisermos, que faça tudo de que necessitamos para viver bem, acompanha a humanidade desde seus primeiros momentos iluminados, como aqueles na cultura ocidental representados por Homero. Copiar a natureza, reproduzir a natureza e fazer melhor que a natureza fez parte desse sonho, como se pode ver nas pinturas murais de Pompeia em que pássaros perfeitamente representados vinham comer frutas mais reais que a realidade em beirais de janela que bem poderiam ser verdadeiros. No século 4 a.C., o matemático Archytas de Tarento, inventor da mecânica, talvez tenha construído uma pomba mecânica de madeira que podia bater suas asas e voar por uns duzentos metros, talvez o primeiro robot e o primeiro drone. E Da Vinci também construiu seu pássaro mecânico, uma de cujas versões Fellini recriou em seu filme Casanova.
A humanidade está agora muito distante dessa pré-história da cultura computacional: já foi à lua, já viu o lado oculto da lua e acaba de ver as imagens que um aparato por ela construído conseguiu fazer do mais longínquo corpo celeste até agora identificado, Farout.
Há um texto, uma história, por trás e por baixo desse sonho que agora se materializa. Todos os modos culturais — a palavra impressa, a fotografia, o cinema, a pintura — elaboram uma narrativa própria do que entende ser o mundo, o universo e a vida. A cultura computacional, a eCultura, tem sido vista como um conjunto de fenômenos que parte da humanidade — em particular aqueles com mais de trinta anos — não lograva entender de todo e que os mais jovens, já nascidos dentro dessa cultura e que manipulam um smartphone ou um tablet antes de segurar um lápis e desenhar e escrever alguma coisa, também ignoravam porque, para estes, essa nova cultura é um dado, algo natural e evidente como a água no interior de um aquário no qual eles mesmos estão. O que essa cultura está longe de ser.
Este livro propõe um sistema de entendimento da eCultura e explora seus princípios e consequências por meio das figuras visíveis que ela já definiu e oferece (ou impõe) à vida cotidiana. O que surge ao final da história é, enfim, o vislumbre de paraíso insuperável ou um pesadelo do qual não será possível despertar.
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Inteligência humana: tão artificial quanto a outra
Fonte: Folha de S. Paulo
Como condenar o passado sob as normas de hoje?
Agora parece ser a vez de Paul Gauguin. A National Gallery de Londres abriu uma mostra dele, e um audioguia do museu pergunta aos visitantes se “será hora de deixar Gauguin de lado de vez?”. Por quê? Porque nos trópicos Gauguin teve amantes menores de idade —indício, não?, de que se aproveitou de sua “posição de poder” (qual, à época?) para ter o sexo que quisesse.
Pior: Gauguin usava as palavras “selvagem” e “bárbaro” nos títulos de suas telas e escritos. Seria, pois, hora de cancelar Gauguin, assim como se cancela a assinatura de um jornal com ideias diferentes das nossas e como Stalin mandava cancelar, de fotos oficiais, a imagem de ex-aliados caídos em desgraça. Era a cultura do cancelamento, antes como agora.