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Em um romance que apresenta um dos começos mais tensos da literatura contemporânea. Sergio Bizzio, em Era o céu, dá voz a um narrador atormentado pela indefinição do que fazer diante daquilo que vê: sua mulher é estuprada por dois homens dentro de sua própria casa enquanto ele, da janela, do lado de fora, encontra tantos motivos para agir quanto para se acovardar.
Essa tensão, que o paralisa, impregna não só essa cena, mas todas as situações que o narrador nos traz ao relembrar como ele foi parar ali, ao mesmo tempo em que se move para encontrar as razões pelas quais a sua esposa, após o estupro, decide mantê-lo em segredo, inclusive sem contar a ele. Que pergunta a faria contar-lhe? A análise que o narrador faz dos gestos e reticências de sua esposa acabam também refletindo sobre os seus próprios, já que ambos passam a atuar um para o outro. É isso um casamento? Conviver com alguém sabendo que ambos escondem partes tão íntimas, coisas tão suas?
A espiral de cenas do passado que culmina nessa ação / inação corre por quase todo o romance. Dessa forma, descobrimos que o narrador, após dez anos de casado, tinha acabado de voltar com Diana, sua mulher, depois de dois anos separados; descobrimos também que, nesse tempo, afastados, ele se envolveu com Vera, uma escritora de sucesso pela qual se apaixonou e se desapaixonou; e que além de marido, também é pai, e essa condição lhe obriga a guardar seus medos em silêncio, para que o filho não absorva as vulnerabilidades e o terror que, aos leitores sim, são expostos e justificados.
Isso porque, o narrador, assim como o próprio autor, é roteirista e diretor de cinema, o que nos leva a, como leitores, desconfiar de como ele constrói a narrativa, para provocar um efeito e, consequentemente, um afeto no leitor. Assim, não só pelo conteúdo, mas também pela forma, acabamos identificados com suas imperfeições, com sua incomunicabilidade, e inclusive com seu desejo de vingança. Em um momento em que carecemos de personagens demasiadamente humanos, mas conscientes de que toda ação tem reação, Era o céu finalmente chega aos leitores brasileiros.
Ellen Maria Vasconcelos
Editora, tradutora e mestra em literatura hispano-americana pela FLLCH-USP.
Sergio Bizzio (Villa Ramallo, província de Buenos Aires, Argentina, 1956) é escritor, dramaturgo, poeta, músico, roteirista, diretor de cinema e produtor de televisão. No Brasil, teve publicado seu conto “Cinismo” (na antologia Os outros: narrativa argentina contemporânea, organizada por Luis Gusmán; Iluminuras, 2010) e o romance Raiva (Record, 2011), que na Espanha recebeu o Prêmio Internacional do Romance da Diversidade. Dirigiu os filmes Animalada (2001), que recebeu o prêmio de melhor roteiro do Instituto Nacional de Cine da Argentina, 2000 e o prêmio de melhor filme estrangeiro no Latin American Festival of New York, em 2002); No fumar es un vicio como cualquier outro (2005) e Bomba (2013). Sua obra literária já foi adaptada ao cinema, com os filmes XXY, de Lucía Puenzo (2007) e O silêncio do céu, dirigido por Marco Dutra (2016). É também membro da banda de rock argentina Súper Siempre, na qual é vocalista, guitarrista e tecladista. O romance Era o céu foi lançado originalmente em 2007, na Argentina.