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São verdades sombrias as que aparecem na obra dos autênticos poetas; mas são verdades e quase todo o resto é mentira.
Paul Eluard
Em Sade são questionados, evidentemente, de maneira muito clássica, os fetiches sociais, reis, ministros, eclesiásticos, etc., mas também a linguagem, as formas tradicionais de escrita; a contaminação criminal chega a todos os estilos de discurso: o narrativo, o lírico, o moral, a máxima, o topos mitológico. Começamos a saber que as transgressões da linguagem possuem um poder ofensivo no mínimo tão forte quanto o das transgressões morais e que a poesia, que é a linguagem mesma das transgressões da linguagem, é assim, sempre revolucionária. Desse ponto de vista não só a escrita de Sade é poética como também Sade tomou todas as precauções para que esta poesia seja inflexível: a pornografia não poderá nunca recuperar um mundo que só existe em proporção a sua escrita e a sociedade não poderá nunca reconhecer uma escrita que está ligada estruturalmente ao crime.
Roland Barthes
Todos sabemos que, até os libertinos, filosofia nenhuma podia se passar de Deus, fundamento verdadeiro e último. Nem se punha a hipótese de uma república atéia, o que seria pressupor a vida em sociedade fora da virtude.
O que há de extraordinário com A filosofia na alcova (romance mais que clandestino, falsamente póstumo, já que seu autor não o publica, em 1795, ao que parece em Londres, sem antes tomar a precaução de fazer-se passar por morto), é que Sade já está aí no contrafluxo dos ideais republicanos. Noutras palavras, na revolução da revolução. As paixões criminosas tão apregoadas servindo de instrumento demolidor da própria república recém-instalada, como forma de auto-representação do mundo laborioso em marcha. Os excessos encenados criticando as liberdades formais que são prerrogativas do século burguês. O Marquês lançando, em suma, como “enfant du siècle” capaz de enxergar longe de seu próprio tempo de que é, inseparavelmente, o resultado e a negação, mais e melhores luzes sobre os limites das próprias Luzes. Derrubada que é, aliás, todo o segredo da famosa advertência no título do panfleto inserido entre o quinto e o sexto diálogos: “Franceses, mais um esforço...”
Há mais que sangue e esperma no laboratório da alcova, espelho deformante da cidade, onde as posições de mando e submissão se distribuem francamente, de modo não apenas a se esclarecerem mas a serem pedagógicas. É o que explica o subtítulo, “Os preceptores imorais”, na tradução de Contador Borges. A erótica sadiana é uma desenfreada política, na ilustração da qual vamos encontrar, de quatro, na mesma posição dos amantes sodomizados, os atores da ordem que institui, longe de Deus, do cetro e do turíbulo, um mundo novo. Mundo que nem por isso deixa de tender maquiavelicamente ao despotismo que denuncia. Daí a necessidade de mais este passo à frente, que apenas Sade dá: a investidura insurrecional do vício, numa república sexualizada. Que não inaugura o terror, mas é inaugurada por ele.
Absolutamente central na obra de Sade, precursor de Freud, só pode ser bem-vinda esta nova tradução da Philosophie dans le boudoir, oriunda do trabalho universitário de um poeta. Mas o trabalho de Contador Borges não para aí. Mais que de tradução, trata-se de uma forma de recepção crítica de um grande clássico que, excetuada a contribuição de Eliane Robert Moraes, segue praticamente inabordado ou censurado entre nós.
Leda Tenório da Motta