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A concisão dessa História é natural para qualquer um que esteja acostumado a não se embaralhar naquilo que não lhe parece ser essencial. Nessas páginas, são narrados os fatos aparentemente mais determinantes quanto à personalidade excepcional, já perceptível, mas que fazem sobressair, mais tarde, essa menina parisiense para quem a guerra de 1914-1918 foi ocasião para inúmeros lutos cujas regras a família dos burgueses ricos e bem-pensantes de onde ela saíra devia seguir estritamente.
No próprio aspecto de seus rascunhos, fica evidente que aqui se trata, mais do que de uma tarefa para falar adequadamente “literariês”, de uma tentativa para, custe o que custar, objetivar alguns desses profundos nós que se formam em um ser ao mesmo tempo rude e sensível, apertando-o até quase sufocá-lo, de modo que para ele é uma necessidade vital projetá-los para fora com a única finalidade de libertar-se deles. Pode-se seguir aqui, nesses primeiros esboços, essa procura acerba e exaltada pela “verdadeira vida” (segundo a expressão de Laure tomada de empréstimo a Rimbaud), exigência sem compaixão que fez com que ela se rebelasse muito cedo contra a fé católica e não deixasse, até seu último suspiro, de embelezá-la e destruí-la.
GEORGES BATAILLE e MICHEL LEIRIS
Laure conheceu experiências parecidas às de certos místicos, mas também poderia ser colocada na órbita de Rimbaud. Próxima de Bataille — quem ficaria espantado? — talvez ela seja ainda mais, pela intransigência do brado, de Antonin Artaud. Ela quis viver, segundo sua expressão, correndo todos os riscos: morte ou loucura e, preferido dentre todos, que lhe faltasse chão sob os pés. Se ela usa a escrita, parcimoniosamente, pode-se ver, é para registrar o traço de experiências pouco comuns ou de sonhos estranhos, para libertar-se da raiva ou, ainda, para fortalecer o orgulho de um ser que rejeita a banalidade tanto em si mesmo quanto nos outros. Ela não sonhou em fazer uma obra literária. No máximo, pretendia que as páginas que não tivesse rasgado fossem conhecidas depois de sua morte.
MAURICE NADEAU
Laure, uma figura do desenredo da vida, fruto de uma educação em que o outro era considerado abjeto, expõe em narrativa faltas e excessos dramaticamente vividos por ela. “Com oito anos, eu não era mais um ser humano” ou “ Eu não habitava a vida, mas sim a morte”. O olhar de Laure é o da fada. Não o da fada dos contos populares com seus poderes mágicos, mas a fada-ruptura, que dissipa sua epifania antropomórfica. É a fada que não se deixa ver e que como uma “flor de sombra” descobre o mundo que a cerca — o de “Benditos sejam Deus e a Pátria”. Laure, História de uma menininha talvez seja a narrativa de possíveis muitas mulheres que tiveram suas vidas marcadas pela insatisfação e pela frustração, e que não puderam narrar o reverso da medalha do Deus, Pátria, Família. Que não puderam ousar, perturbar, os suportes subterrâneos e não ditos dessa sociedade.
VERA CASA NOVA
Nascida em Paris em 1903 numa família católica abastada e conservadora, Colette Peignot rebelou-se contra seu passado burguês. Usando o apelido de Laure, ela se recriou, adotando como estilo o decadentismo, a política radical e uma voz angustiada em sua poesia, prosa e ensaios. Associou-se a escritores importantes e a dissidentes políticos da vanguarda parisiense de entre guerras. Laure trabalhou e financiou o jornal esquerdista La Critique Sociale, que publicou alguns dos ensaios mais importantes de Georges Bataille, bem como os de outros surrealistas e marxistas. Aos 31 anos, ela começou um intenso caso com Bataille, morrendo em sua casa quatro anos depois de tuberculose.