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A expressão “história natural” remete-me às vozes de conquistadores, clérigos e legatários que desenharam o mapa de territórios que não lhes pertenciam. No melhor dos casos, desde o legado da violência, suas minuciosas descrições nomearam um mundo de maravilha.
História natural da ditadura, como tantos outros textos de Teixeira Coelho, tece uma simultaneidade de sentidos: a ditadura como estado natural; a natureza da ditadura; a inacabada e constante crônica da depravação e cumplicidade com a des/ordem e a repressão, com a mesquinhez e a hipocrisia. Para além do ensaio e da encenação do eu, suas páginas incitam a uma reflexão constante.
Tanto a sedosa prosa como o tom ocasionalmente ríspido de Teixeira provocam, agitam, incomodam, açoitam como a tramontana em Portbou diante do não-monumento a Walter Benjamin, acusam o golpe ao plexo que León Ferrari continua dando, denunciam as máscaras civis do autoritarismo e as botas de todos aqueles que marcaram uma nova (e perecível?) ordem em ambos lados do Atlântico.
Cômodo em seu corpo e incomodado pela história que atravessa; olhos postos na estética mas (felizmente) distraído por uma lógica centrada em marca ética, Teixeira navega pelas décadas do século passado; por Bellagio, pelas ruas de sua cidade ou da cidade que se chega a ser filha de seus desejos; por museus e galerias; ouve as vozes que a arte proclama e o silêncio dos que seguem cultivando o silêncio ou vivem da estridência. Ira, nostalgia, melancolia, decepção, amor (sempre): matérias da vida, de reduzida esperança, de passageira indignação. Apesar de tudo — dos erros e horrores, das falsas redenções e dos estados de exceção (na proclamação do ditador da vez ou na reflexão de Agamben), de uma tristeza sem fim como a esteira deixada por uma mulher que se foi — não há renúncia, nem abandono. Talvez surpreenda associar uma aposta otimista à escrita de Teixeira — mas não será esse o sentido da renúncia ao silêncio, do ato de pôr em jogo a primeira pessoa, de mostrar a pele curtida pela arte e pela música e pelo cinema e pelo pensamento dos que já não são ou não mais deveriam ser?
Nenhuma leitura se justifica se nada muda depois de concluída. História natural da ditadura lança interrogações, promove a dúvida, desafia certezas. E o faz nesse tecido privilegiado em que convivem a reflexão e o gozo, a carícia e o golpe de vento que se afirmam na vida. E é assim que se lê!
Saúl Sosnowski
Diretor da revista de literatura Hispamérica; professor de literatura latino-americana da Universidade de Maryland; autor, entre outros, de Júlio Cortázar: una búsqueda mítica, Borges y la cabala e, em colaboração com a artista Marta Kupferminc, Borges y la cabala: senderos del verbo, livro de diálogo entre letra e imagem.