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“Cachorro morto num saco de lixo/ areia, sargaço, cacos de vidro/ mar dos afogados, mar também dos vivos/ escuta teu murmúrio no que eu digo./ Nunca houve outro sal, e nunca um dia/ matou o seu poente, nem a pedra/ feita de outra pedra, partiu o mar ao meio./ Assim é a matéria, tem seu frio/ e nunca vi um animal tão feio/ nem pude ouvir o seu latido./ Por isso durmo e não pergunto/ junto aos juncos.”
Antes mesmo de sua publicação em livro, Junco ganhou de alguns de seus leitores um epíteto — “a máquina do mundo cão” — que parece difícil de descolar desse conjunto de poemas em que Nuno Ramos vem trabalhando nos últimos catorze anos. Não é preciso adivinhar a referência à busca do sentido do mundo, à “total explicação da vida” que espantosamente se abre aos olhos de um caminhante solitário, ainda que para se recolher, logo em seguida, e sem desfazer o enigma, como no poema de Drummond. A máquina do mundo se expõe diretamente aí em nota e em recortes brevíssimos, encravados nos textos. E se oferece, ainda, como cena primordial — no meio do caminho da vida — que organiza a paisagem marítima infernal — praia, praia, praia, praia - na qual se opera um misto de junção e tensão figural, que estrutura, em via dupla, mas em mútua interferência, a série poética de Nuno Ramos, entre os restos de um cachorro morto largado no asfalto e os de um cadáver de árvore, junco jogado na areia. E também entre texto e fotografia — pois, ao lado da sucessão de refigurações de cão e junco, reitera-se literalmente, ao longo do livro, a exposição de imagens do tronco na beira do mar e do cachorro morto no chão.
A trama dupla, no entanto, se sugere o analógico, é para travá-lo em seguida. Mesmo que as fotos os apresentem em disposição quase idêntica, parecendo reforçar comparações, é impossível não ver a matéria diversa de que são feitos animal e caule. Pois cão é cão e junco é planta. E mesmo que o caule se exponha como cão-lagarto, lambendo algas, e ao cão, no asfalto, se possa ver como junco, lenha, banha, planta, persiste a dissimetria. E é pela insistência nesse paralelismo, mas a distância, das imagens que Nuno Ramos se avizinha, em movimento largamente expansivo, do belíssimo jogo entre bala, relógio e lâmina, realizado por João Cabral de Melo Neto em Uma faca só lâmina. Acrescentando-se, assim, a um modo cindido de figuração (reduplicado, ainda, entre lágrima e onda) outra tensa articulação — entre o poema narrativo e a composição serial, e entre o formato circunflexo, expressivo, do rosto e o livro silencioso de areia com que se encerra o último poema.
Flora Süssekind
Nuno Ramos nasceu em São Paulo, em 1960. É artista plástico e autor dos livros Cujo (1993) e O pão do corvo (2001), pela Editora 34, Ensaio geral (2007) e O mau vidraceiro (2010), pela Editora Globo, e Ó (2009) — vencedor do Prêmio Portugal-Telecom —, pela Editora Iluminuras.