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“Só sendo jovem para poder imaginar qual o efeito que o Laocoonte de Lessing exerceu sobre nós, na medida em que essa obra nos arremessou de um horizonte miserável para os cumes livres do pensamento. O ut pictura poesis, por tanto tempo mal interpretado, foi de repente superado; a diferença entre as artes plásticas e a poesia ficou clara, os cumes de ambas apareceram então separados, por mais que as bases se encontrassem. O artista plástico deveria manter-se dentro das fronteiras do belo, por mais que ao poeta – que não pode passar sem um significado de qualquer espécie – fosse permitido errar para além delas. Aquele trabalha para os sentidos externos e só se satisfaz com o belo, esse para a imaginação e pode se entender com o ‘feio’.”
Goethe
Ut pictura poesis, escreveu Horácio retomando Aristóteles: a poesia, assim como a pintura, representa as ações e paixões humanas. Como se dirá mais tarde, porém, não as representa segundo a fantasia do poeta ou do pintor, e tampouco de maneira servil, copiando a natureza existente, mas sim de modo ideal, segundo um princípio da retórica clássica, a electio. Como exemplo, eis a famosa anedota de Zêuxis, contada por Cícero, Plínio, o Velho, e muitos outros. Incumbido de decorar o templo de Hera em Crotona, o pintor decidiu representar o ideal de beleza feminina e, para isso, solicitou como modelos cinco formosas mulheres, entre as quais a natureza teria partilhado suas perfeições. O poeta e o pintor imitam, assim, a bela natureza, submetendo as imperfeições do mundo a operações semelhantes às do orador: a inventio (invenção), a escolha do argumento e das grandes linhas da composição; a dispositio (disposição), o plano e suas articulações; e a elocutio (elocução), o arranjo das palavras, o trabalho do estilo.
Pode-se dizer que essa concepção, que desce do geral ao particular, prevaleceu até o momento em que a beleza deixou de ser uma propriedade objetiva das coisas e se tornou um sentimento experimentado pelo sujeito. Dessa ideia, que surgiu no século XVIII, decorrem duas consequências: antes de tudo, pintura, poesia e demais artes já não são pensadas no domínio da Retórica, passando a pertencer ao território de uma nova disciplina, a Estética (aisthesis, em grego, quer dizer “sensação”, “sentimento”); em seguida, o parentesco entre essas artes já não é deduzido de uma definição prévia da beleza, mas obtido indutivamente, resultando do inventário das técnicas que as distinguem entre si. Não há estética sem crítica de arte.
Assim, após Shaftesbury e Dubos, Diderot dirá que o belo momento do poeta nem sempre é o do pintor e que, ao representar uma ação, o pintar deve escolher o momento que “agrada aos olhos” e não aquele que “arrebata a imaginação”. Virgílio pinta a fronte tranquila de Netuno quando este emerge das profundezas do oceano, a fim de pacificar uma tempestade na superfície. Se elegesse o mesmo momento para seu quadro, o pintor não faria uma boa escolha: em vez da cabeça majestosa do deus, representaria apenas um homem decapitado.
A razão da diferença foi examinada em toda sua amplitude pelo Laocoonte de Lessing (1766). Partindo de um problema empírico semelhante, Lessing analisa o célebre grupo de mármore da Antiguidade que representa Laocoonte e os filhos atacados pela serpente enviada por Apolo. Por que, na estátua, a dor do sacerdote troiano exprime-se com “nobre simplicidade e calma grandeza” (Winckelmann), em contraste com “o grito horroroso” do Laocoonte de Virgílio, ou com as pragas e os uivos do Filocteto de Sófocles? Em suma, Lessing responderá que os momentos do poeta e do pintor (ou do escultor) não são os mesmos, porque poesia e pintura (ou escultura) se distinguem não apenas quanto aos meios, mas igualmente quanto aos objetos. As artes plásticas são artes do espaço e representam os corpos com suas qualidades visíveis, só imitando ações por intermédio dos corpos, portanto, de modo indicativo. Inversamente, a poesia é uma arte do tempo, seu objeto principal é a ação, e apenas por meio desta deve representar os corpos (por isso, Homero não descreve a beleza de Helena, e sim o efeito que provoca sobre a assembleia de anciãos de Troia).
Este volume que a “Biblioteca Pólen” deixa agora nas mãos do leitor brasileiro, é um clássico dessa tradição que se demora no inventário das particularidades que distinguem as artes. Um grão de pólen daqueles bons tempos em que filosofia e crítica estavam bem próximas e, muitas vezes, pareciam uma coisa só.
Franklin de Matos