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Neste arruado sem um outro esteio
que estar no ar (aberto)
qual flor no seu canteiro —
passeia a vaga dimensão das eras
e a cidade e já o mapa inteiro.
Este é um livro de horas incendiadas onde pulsa primeiro um viveiro de gatos, cantares, casas, galos, árvores, vacas, folhagens, pessoas e personagens. "Inquilina inquieta do intervalo", “provisória passageira de lumes", a escrita se detém nesses seres e neles se atravessa pelas vogais da dicção mais alta (alta apenas porque "é toda em cada coisa", como a lua naquele poema de Pessoa). No miolo, o livro é cheio e vazio de coisas de mulher: vida cava, definições impróprias, frutos proibidos, sonetos enclausurados, segredos culinários, ardores de Santa Teresa ("O Senhor fez nela o seu piano — a maneira íntima de deitar as mãos sobre o humano"). Mas assim como no limiar em que "a carne se vai vergando em espirito”, esse piano toca também o sobre-humano (como nas belas elegias à luz absoluta da mulher morta que impera no portal onde quer estar "plena, densa, bela — e só!"). A terceira parte se entronca na memória da família do mesmo modo que o nó da árvore despontava da mesa e estremecia no assoalho da casa, no poema de abertura do livro.
A autora alia um conhecimento de causa da poesia culta como despojamento da memória provincial mais nua. Independente das referências fortes que transparecem no livro (de Rilke a Florbela), a sua arte é a do tear, enleio de trama e vazio, toalha de crochê que apreende o jarro ("enquanto os cristais mal se sustêm de êxtase"), ara de aranha tecendo moradias invisíveis e "domínios inapreensíveis" com seu o tênue que ninguém saberia deslindar.
José Miguel Wisnik