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Um dia (já faz tempo) uma mulher me surpreendeu com olhos muito atentos. Tinha um rosto espantado e insistia em me olhar. Acho que queria apalpar-me com os olhos. Foi quando percebi que, como num momento de fecundação, eu saltava para dentro de uma forma e me tornava definitivamente visível, tocável, como qualquer corpo existente. Este porte", ela disse, "esta tez", pronunciou ela com uma voz oracular e um olhar que, me dando peso, cor e luz, finalmente me fisgava da falsa modéstia e sobretudo da vontade reprimida dos afetos. Alguém, na ocasião, me falou em feitiço. De fato, só um mecanismo mágico poderia conferir-me aquele salto do informe e do possível para o vigor do corpo em estado de vida. Aquele olhar e o percurso misterioso até as palavras pronunciadas evocavam aquele gesto definitivo com que um poeta, ao conferir existência as suas criaturas, cativa-as numa trama de sortilégios.
Lembrei-me dessa experiência intima (que, com algum pudor exponho aqui), em todos os momentos da leitura deste livro de Maria Lúcia, durante a qual me identifiquei com os objetos, quadros, flores, frutos, retratos de mulher com leques, boás ou guarda-sóis.
É uma poesia que ousa indicar, sob o tecido insidioso de seus circunlóquios, o que a cada um dos objetos seres em definitivo compete consistir poeticamente. É assim que, no percurso enredado de cada um dos poemas, há um momento em que a palavra se lança, como um arpão, tentando atingir aquilo a que, secretamente reservados nos objetos, o poeta se atreverá a conferir corpo e existência. O discurso desses poemas é, portanto, falsamente descritivo. Uma mulher, munida de seu olhar inquiridor e de sua caixa de pincéis, tintas e mistérios, posta-se diante de um vaso de flores, de uma paisagem florida ou de um fruto anônimo. E, como se apenas quisesse imitar-lhes a forma, inicia seus esboços. O mesmo modo com que eu estava desavisado diante daquela mulher de quem falei antes, os objetos estão ali parados. De repente, as flores sangram, a paisagem se contorce e o fruto escancara sementes e mel, como se os agitasse a mesma força Constituidora que, um dia, me fizera saltar para dentro de um corpo irremediavelmente vivo. "Façam-se", diz ela, e com o mesmo comprazimento dorido do nascimento, aí estão eles, poeticamente repostos em vital desassossego: a mulher de guarda-chuva sobre a ponte, os girassóis dos campos, os frutos de quintais remotos, as cintilantes damas dos retratos de Klimt.
A mulher de olhar atento, Voz sibilina e um livro de versos na mão... É um risco ir além dessa conjunção de dados, sem que esses lancem sobre o tabuleiro, mais uma vez, a cifra escancarada da precariedade de nossos segredos.
Haquira Osakabe