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Numa das páginas deste livro, George Steiner sonha, diante de uma famosa tela de Chardin, com “uma leitura bem feita” por um filósofo rigoroso, atento ao bruxuleio das conotações, e indaga: “o que restará, no mundo numérico de amanhã, dessas paixões impenitentes?”. Outro contemporâneo nosso pretende, porém, que “as boas maneiras” de ler, hoje, consistem em tratar um livro como se escuta um disco, como se vê um filme ou um programa de TV, como se ouve uma canção.
Aqui, o rigor acadêmico; ali, a gaia ciência; e, entre as duas, numa das múltiplas e rápidas dobras d’O Livro dos Simulacros, um certo professor Giangrande aspira a encontrar, nos restos carbonizados da Villa dei Papiri soterrada pela erupção do Vesúvio, “num estojo precioso, os nove rolos de papiro contendo os nove livros de poemas que a antiguidade atribui a Safo de Lesbos”, isto é, uma totalidade para sempre perdida. Por outro lado, ao recortar do espaço cultural e reutilizar – como numa colagem – vozes da tradição ocidental da escritura, este livro instaura também, em todo o percurso, a historicidade dessas práticas e cerca, com a insistência de quem sublinha uma frase com um marcador de textos, os acasos da dedicatória, da epígrafe, da introdução, embora não faça jamais referência às conclusões, codificadíssimas desde a mais alta antiguidade.
Falei acima de duas formas de se aproximar de um livro. Na verdade, inumeráveis são “as boas maneiras” de ler, tomando essa expressão também no sentido que ela tem nos tratados de cortesia: encarapitada no alto de um fragmento d’O Livro dos Simulacros, a estrige ou gárgula de Charles Méryon apoia o queixo na mão e lança, na atitude do melancólico, um olhar demorado sobre Paris: “Esta cidade é um texto”, pensa o demônio, “um livro feito de confusas vozes de pedra e do voo aflito das águias, um almanaque de palácios, monumentos e casebres. Um livro à espera de um cataclisma”. “Ou de vários”, pondera um escritor que, do alto das torres, também está atento à cidade.
Observem bem: as cores e o grilo no parapeito da gravura de Méryon são intrusões do autor.
Jane A. Ellison
Riverkootenay University