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A tv que amanheceu ligada lança um resplendor de brasas.
Uma imagem congelada na tela, um rosto na iminência de anunciar algo sem poder fazê-lo — talvez a transmissão ao vivo de um desastre.
Agachado diante da tv como diante de um espelho, arde-me o rosto
Procuro o telefone ao meu redor, não o acho, ergo-me, deposito o abajur ligado na mesa.
Olhos fixos na mesa onde pouso firmemente ambas as mãos, mas a mão direita desliza lentamente para o lado na madeira e des... cobre outra mão, uma mão lívida pousada na mesa como uma mancha de suor — é um órgão trêmulo, e se reúne ao primeiro como uma luva, uma luva interna que não cobre a pele mas se aloja sob ela
MAIS OU MENOS DO QUE DOIS encena um mito grego e/ou indígena: o dos heróis gêmeos.
Quero dizer que meu texto um rito: ao lê-lo, o leitor terá de girar às vezes o livro nas mãos, manipulando-o certamente não só como um espelho...
O texto contém várias linguagens (prosa, poesia, tradução, pastiche, teatro, ícones, roteiro de cinema) e, no final, toda essa linguagem é "liquidada", ou seja, as sílabas das palavras se espalham soltas (ou quase soltas) na página.
Esse é o final de todo herói mítico depois de morto, inclusive Macunaíma, Castor e Pólux e os Gêmeos da mitologia jê — são frases liquidadas, pulverizadas.
Mas este livro na verdade não tem final, ele está estruturado sobre um conjunto de índices (listas de nomes e assuntos) que apontam para a frente e para trás, para o passado e para o futuro, criando uma leitura não-linear do mito dos gêmeos gregos e/ou do mito dos dióscuros indígenas.
Sérgio Medeiros
(depoimento dado a Douglas Diegues, suplemento "Palavra-Boa").
Sérgio Medeiros é autor de um estudo sobre os mitos xavantes, O dono dos sonhos. Traduziu vários livros, dentre eles Algumas aventuras de Silvia e Bruno, de Lewis Carroll, e Novembro, de Gustave Flaubert, ambos publicados por esta editora. Colaborou em jornais e revistas como O Estado de S. Paulo, Jornal da Tarde, Folha de S. Paulo e Cult. Atualmente é professor de literatura na Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, e prepara novos textos experimentais.
Sérgio Medeiros usa mitologia ameríndia em dois livros de poemas ♥
'Os Caminhos e o Rio' e 'Caligrafias Ameríndias' mesclam versos e artes visuais inspiradas na tradição indígena