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A biografia explodida
Há romances de iniciação, como Wilhelm Meister, de Goethe, e outros de conclusão, como Morte em Veneza, de Thomas Mann. Talvez fosse conveniente falar-se também em romances da mediação, como é o caso deste Niemeyer, um romance. Aqui, o personagem principal (mas quem é o personagem principal?) procura retrospectivamente apossar-se da experiência de viver um país através da tentativa de compreender um de seus símbolos máximos, um arquiteto que dá forma e figura concretas a esse país. Procurando escrever a biografia do arquiteto, o personagem principal — melhor dizer: o narrador — busca entender seus próprios motivos e sentimentos não apenas diante desse país como de uma relação amorosa. A narrativa se estabelece, assim, no tripé um caso de amor (a mulher) / um caso de ódio (o país) / um caso de amor-ódio (o arquiteto). Procurando tocar no país, o narrador fala do arquiteto; falando do arquiteto, reflete sobre a mulher; remontando a imagem dela, desenha-se a si mesmo do modo como ela o vê. A dificuldade da relação direta com as coisas, os objetos, as situações e as pessoas constitui assim o núcleo desta história de mediação que aborda um momento do Brasil entre, como se infere, os obscuros anos 60 e 80, época de uma noite continuada sob a ditadura militar.
Tanto quanto sobre pessoas, este é um romance "sobre" noções que balizam as vidas das pessoas. Desperdício de energia, personalidade, separação, juízos de valor, traição, explicações causais, sentimentos pela cidade, país grotesco são algumas das ideias que obsessionam os personagens e em torno das quais giram. São essas ideias que servem de espelho no qual os personagens reciprocamente se veem e se escondem.
Niemeyer, um romance é, de início, uma ironia contra a mania contemporânea das biografias que movimentam milhões (de dólares, sobretudo) ao redor da dissecação, mortificação ou exaltação de personalidades da cultura pop, da política ou da arte. Ao contrário do que acontece nas biografias produzidas segundo moldes de sucesso comprovado, aqui o biógrafo vê embaralhadas as informações sobre o biografado e só indiretamente pode alcança-lo ao alcançar, na medida limitada em que pode fazê-lo, a si mesmo. As biografias "duras" assumem o "princípio Plutarco" e procuram a narrativa mítica que permite descobrir a verdade por trás da aparência. Nesta, há também um mito, o do Arquiteto; mas a verdade se furta. Se aqui se explode a biografia, não se deixa de reverenciá-la — na única forma, porém, em que parece possível: ficcionalmente.
Luca Santi
Teixeira Coelho vive em São Paulo onde é professor da Escola de Comunicações e Artes e diretor do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo. Publicou, entre outros, Dicionário crítico de política cultural, Moderno pós moderno, Guerras culturais, Arte e utopia e as ficções Fliperama sem creme e As fúrias da mente.