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Há uma São Paulo que soçobrou, vítima do dito progresso e da proverbial falta de planejamento urbano e espírito público de gerações de políticos, administradores e cidadãos das mais variadas extrações ideológicas. Esta São Paulo (ou deveria dizer estas São Paulos?) está preservada na obra de cineastas como Luis Sérgio Person, Ugo Giorgetti e Sergio Bianchi, bem como na de escritores como Ignácio Loyola Brandão e Caio Fernando Abreu.
Alberto Guzik já havia obtido sua carteirinha de sócio de tão seleto grupo de artistas com seu romance Risco de vida. A São Paulo dos anos 80, sua gente e seu pathos estão ali imortalizados. Com o presente volume de contos o retrato se estende para os anos 90.
A dilatação não é apenas temporal. Se no romance os filhos da classe média que exercem atividades “culturais” (jornalismo, teatro) protagonizam; nos contos se revezam na função milionários de boa família, remediados sem pedigree, atores de filmes pornográficos, favelados, emergentes. À São Paulo que tem por eixo a Avenida Paulista incorporou-se o centro degradado e a periferia que nunca conheceu outra condição.
Em comum a todas histórias, a presença de uma obra de arte que catalisa a crise do protagonista. Elis Regina, Francis Bacon, Lawrence Olivier - artista e obra dialogam com o inconsciente das personagens. Mesmo quem não “entende” a obra de arte é por ela transformado. Guzik não expõe essa ideia. Ele a realiza num conjunto de textos que mobiliza mesmo leitores a quem seus temas soem estranhos.
Assim como a São Paulo de hoje é um resumo do mundo e uma promessa do futuro, O que é ser rio, e correr? sintetiza e retoma uma tradição literária que dialoga simultaneamente com o realismo e o fluxo de consciência, ao mesmo tempo em que aponta para formas e conteúdos que apenas intuímos.
Pode-se entendê-lo, por exemplo, como um romance em sete partes, em que cada conto só pode ser totalmente compreendido no interior da rigorosa arquitetura do conjunto. E, como a tentativa de se compreender como as relações pessoais determinam uma estrutura política e econômica que não se alterará apenas por decretos (ou medidas provisórias).
Dora provavelmente matará seu marido estuprador — mas o horror que enxergou na obra de Bacon e na felação perpetrada pela patroa não encontrará uma reação à altura. Adonias jamais compreenderá o fato de ter sido seduzido por Olivier, nem a condição de mercadoria a que relegou seu corpo. Rodrigo levará a influência de Billie Holliday e Cássia Eller até as últimas consequências, sem compreender que a trilha sonora da sua vida pode ser reflexo e causa de uma mesma angústia.
As histórias são desenvolvidas apenas até o ponto necessário para que o desenho da personagem e de sua crise se complete. A angústia dessa vida em suspenso passa a ser também do leitor.
O que é ser rio, e correr? é literatura que dá prazer e angústia, sem que uma sensação possa ser dissociada da outra. Se isso não é Arte, definitivamente eu não sei o que pode ser.
Aimar Labaki