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“O ator é um atleta do coração”. Com essa frase, Antonin Artaud não poderia ter ido mais longe no entendimento dos duplos do teatro. O atletismo afetivo ao qual ele se refere faz do teatro uma experiência sensível para captar até mesmo os mínimos instantes metafísicos de forças adormecidas. Para além do manifesto do teatro da crueldade no começo dos anos 1930, Artaud desmonta os psicologismos do teatro moderno e, sob o princípio do duplo, o teatro é posto à prova pela cultura, pela peste, pela própria metafísica, pelos procedimentos alquímicos até atingir os pontos de tensão entre ocidente e oriente.
Esse teatro tem uma linguagem concreta: busca-se uma dignidade típica de exorcismos particulares. Eis uma espécie de possessão pelas formas de sentidos e de significações. Muito atento à linguagem, Artaud buscou extrair dela uma capacidade primeira de feitiço, podendo ser um detalhe ou uma articulação de detalhes. Diante da cena e em cena, emerge um teatro de transes, cujo repertório totêmico e hieroglífico põe em circulação a palavra colada ao seu sopro, ao gesto e à expressão, ou a combinação deles.
O teatro e seu duplo contém uma consciência singular que um encantamento pode ser elaborado. Para fabricá-lo, Artaud ressalta vibrações menores: entonações, linguagem visual de objetos que, junto aos gestos, prolonga seus sentidos fisionômicos aos signos. Artaud abre o terreno dos limiares, situando o teatro numa encruzilhada entre cores, luz, instrumentos musicais, figurino, palco ou local de encenação. Eis alguns dos pontos cardinais onde o corpo permanece como um espaço de invenção. No Brasil, pode-se imaginar a beleza inquietante deste livro aberta às manifestações afro e ameríndias onde as sombras ancestrais encontrariam uma força extática e performática. Nesse sentido, os objetos encontram uma potência sonora expressiva, propiciando vasos comunicantes entre forças adormecidas. Daí a necessidade do seu grito.
Uma vez posta a crítica do teatro bem falado, que não sabe gritar ou orientar-se por gestos, Artaud faz com que a força vital dos afetos siga acionando o duplo do teatro. O humano, para além e aquém da sua própria espécie, assume uma dimensão espectral da sensibilidade. Extremamente atento, rigoroso, Artaud capta as vibrações não-ocidentais para alterar os rumos do teatro em pensamento e em ato. Ele implode a retórica bem comportada para fazer com que o teatro respire, pulse no seu atletismo afetivo que nos mantém enfeitiçadas, enfeitiçados.
Eduardo Jorge de Oliveira