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Um magrelo cinquentão cocainômano, recém-convertido ao protestantismo, cujo sugestivo apelido – osso – é o que lhe resta quando perde a memória e acorda numa favela com uma gorda louca que diz ser sua esposa.
Um vendedor de peles gordo e diabético, acossado pelo greenpeace e o aquecimento global numa Buenos Aires na qual seu ofício herdado da família vai se tornando anacrônico, e que ao sair com prostitutas diz ser o advogado roberto, e não o peleteiro landa.
Esses são pele e osso, os personagens-marginais do mais novo romance do consagrado escritor argentino Luis Gusmán, autor de o vidrinho (Iluminuras, 1990) e Villa (Iluminuras, 2001).
Entre Pele e Osso, o narrador tece uma intrincada rede de tipos que compõe uma Buenos Aires decadente, como o engenheiro que também é piloto de barco; alguém cujos maiores atributos são o nome – Bocconi –, as piadas óbvias e a desconfiança contra quem mente o próprio nome e a profissão; a bioarquiteta e radiestesista que fez plástica para mudar a energia do rosto; a prostituta de nome russo que ganha um extra como reikiana; o pai-de-santo sedutor que rouba a mulher de Osso; a bióloga ecologista que trai o marido com o professor de mergulho e se apaixona por um peleteiro que se diz advogado.
Tais personagens se encontram pela habilidade narrativa ágil e econômica de Gusmán, que tem como uma de suas principais virtudes deixar falarem seus personagens. A força do diálogo é recuperada neste livro, e cada um desses anônimos, com as suas palavras ditas à meia, se escondem e se mostram, em silenciamentos compartilhados pelo narrador, sempre comedido.
Em Pele e Osso, a fala está reduzida ao essencial, não o da comunicação, mas o que caracteriza o diálogo vivo, com suas vacilações, provocações mútuas, mal-entendidos, silêncios.
E o que une Pele e Osso? Interesses egoístas, a fúria incendiária compartilhada, um plano terrorista delirante ou apenas um fiapo de comunhão contra o desamparo, numa condição que os impele à solidão? Enfim, é difícil saber, pois nesta Buenos Aires, a globalização, o ecologismo, o charlatanismo e outras mistificações se somam como uma torrente alienante, em contraponto a Pele e Osso, que ao se exporem numa dimensão intimista, revelam-se não meramente como tipos alienados, mas como singularidades vivas, que podem inclusive trocar de nome, fé, profissão e bandeira, por conveniência ou necessidade. Há poucas respostas. Poderia se dizer também que Pele e Osso é um livro sobre a amizade.
Wilson Alves-Bezerra