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Como um clássico, as aventuras de Robinson Crusoe pertence à categoria daqueles livros que, como disse Ítalo Calvino, nunca são lidos, mas relidos; ou que, constituindo um tesouro inexaurível aos que os leram quando bem jovens, continuam a ser a mesma coisa aos que os leem em idade mais avançada e com mais condições de apreciá-los; ou mesmo livros que mudam, a cada nova perspectiva histórica, como nós outros mudamos, e que por isso mesmo, ao nos caírem nas mãos em épocas sucessivas, fazem com que sua releitura seja um "acontecimento totalmente novo".
Totalmente novo, à época, é o método literário de Daniel Defoe (1660-1731), moldado em seu trabalho jornalístico — atribui-se-lhe, além do título de pai das modernas obras ficcionais, a honra de criador do jornalismo britânico — e marcado justamente pelo uso imaginativo que faz de registros históricos. Produto desse método é, por exemplo, seu Diário do ano da peste, obra-prima de reconstituição histórica que versa sobre a grande peste que grassou em Londres, narrada por um artesão puritano, atento à mão da providência em todas as coisas e fascinado pelos fatos da vida urbana coletiva.
Pois, na verdade, paralelamente aos valores de Defoe — os da classe média puritana a que pertenceu, a exemplo de Robinson Crusoe, personagens às voltas com suas contas e adquirindo direitos de propriedade sobre sua ilha, a principio em revolta contra Deus mas ao fim e ao cabo descobrindo os caminhos da graça divina e do capitalismo — paralelamente a isso, acha-se sua quase obsessão pela narração de simples "fatos", que por sua vez corresponde e a seu ideal artístico de lograr uma prosa impessoal e incolor, num estilo, por assim dizer, "jornalístico", tão desprovido de artifícios quanto possível. Ou seja, um estilo já "moderno", capaz de desconcertar os “intelectuais" da época, os quais, talvez enciumados com a imensa popularidade do livro, empenharam-se em lhe apontar os “erros de geografia e de incoerência" — mas um estilo profundamente admirado, por exemplo, por uma das colunas do modernismo europeu, James Joyce, que lhe soube reconhecer a imensa capacidade em produzir a ilusão de verossimilhança na reconstituição da "vida comum" ou de atributos humanos que não mudam com o passar do tempo.
Por essa razão é que, a par dos ingredientes de um típico "romance de aventura" — um filho rebelde, tempestades, piratas, escravidão e naufrágio — vai-se nos fixando na memória o registro do trivial e comezinho — uma faca pequena, uma caixinha de tabaco, um cachimbo, um livrinho que se torna um diário — até que a experiência de um homem que se vê na contingencia de ficar isolado numa ilha por muitos anos passa a ser símbolo da experiência de todos os homens — como o Leopold Bloom de Joyce.
E por sermos, no fundo, um pouco como Robinson Crusoe, tentando organizar nossa vida na ilha que é o mundo moderno, é que este "clássico" volta a cumprir mais uma de suas funções, segundo o mesmo Ítalo Calvino: a de ser um livro que se configura como o equivalente do universo e que jamais é indiferente ao leitor, a quem faz com que se defina a si próprio "em relação a esse livro e talvez em contraste com ele".
Alípio Correia de Franca Neto