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Não há nada de trivial ou inócuo na simetria particular que a figura do duplo, absolutamente central à literatura moderna, e não apenas a ela, evoca. Desde o título do seu Samuel Beckett e seus duplos – Espelhos, abismos e outras vertigens literárias, Cláudia Maria de Vasconcellos aponta para uma configuração especialmente complexa que o recurso assumiu na obra final de um dos grandes da literatura do século XX, cuja importância excede em muito a autoria de Godot e Molloy. Em Improviso de Ohio (1980), miniatura dramática musical e densa como um poema, a dramaturga e pesquisadora, também autora de Teatro inferno: Samuel Beckett (Terracota, 2012), encontrou um caso de exploração total e inovadora do duplo, espécie de culminância da história de um recurso literário cujos capítulos essenciais foram escritos por nomes fundamentais, como Edgar Allan Poe, E.T.A. Hoffmann e Dostoiévski, sem esquecer mestres modernos, como Pirandello, Gide, Thomas Bernhard e Georges Perec.
O teatro beckettiano tardio, o dos dramas em miniaturas, faz o espectador duvidar da inteireza da sua percepção, dos limites da sua identidade, da própria solidão ou da companhia que o cerca. “Talvez eu esteja só imaginando coisas”, “eu não estava lá”, “ouvi você distintamente”. Falamos de obras que se instalam na oscilação perpétua entre imagem e presença física, realidade e imaginação, e se espelham numa forma que equivale a um passeio rigoroso, sem amarras, nem limites definidos, entre gêneros (lírico, narrativo e dramático), modalidades afetivas (ironia, simpatia) e atmosferas, entre solidão e companhia, deixando espectador, leitor e personagens na mesma idêntica (e dividida) condição: sozinhos juntos, bela fórmula beckettiana que resume o paradoxo que a insólita figura do duplo propõe, combinando divisão e repetição, espelhamento e oposição, desconforto e descoberta.
A engenhosa arquitetura de Samuel Beckett e seus duplos – Espelhos, abismos e outras vertigens literárias se aproxima aos poucos e sorrateira da complexidade dos múltiplos níveis de duplicação propostos por Improviso de Ohio. A estratégia é apresentar, com minúcia informada e perspicácia analítica, momentos anteriores da obra de Beckett em que seus personagens encaram duplos (enxergando a si mesmos exteriorizados, seres autoscópicos, ouvindo-se a partir de vozes exteriorizadas, acusmáticas); em que a construção da obra se duplica internamente, e narradores narrados a consideram a cada passo da sua própria criação, a um só tempo criadores e criaturas (as narrativas encaixadas do miseenabyme); em que a experiência transfigurada na literatura flerta com a máscara autobiográfica, confundindo real e ficção; por fim, com uma vertigem mais aguda, em que se produz um embaralhamento entre o tempo da fruição e o da experiência, o leitor/espectador forçado a projetar-se nas disposições e incertezas também de personagem e autor, tomado integralmente pela invenção ficcional. Esse diálogo interno à obra beckettiana se completa com aberturas para outras justaposições reveladoras, em que o autor de Fim de partida se ilumina a partir de leituras paralelas imprevistas, como a que o aproxima de Gide ou de Perec, ou da exploração de afinidades conhecidas, como as que o ligam a Bernhard ou Pirandello, ampliando, e muito, o alcance deste instigante (e notável) ensaio.
Fábio de Souza Andrade