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Contemporâneo de Sade, o terremoto de Lisboa, ocorrido em 1755, teve enorme impacto no pensamento europeu, fazendo surgir no horizonte um imaginário catastrófico que veio a abalar os alicerces da racionalidade iluminista com furacões, naufrágios, tempestades, desabamentos e toda sorte de cataclismos. Um desejo de fim do mundo se precipitou então na sensibilidade coletiva, alcançando os anos Oitocentos com particular vigor, em especial no romantismo, para chegar ao século XX como um legado importante que alimentou o espírito inquieto das vanguardas.
Depois da bomba atômica, porém, a paisagem sensível passou a testemunhar o declínio do sentimento da catástrofe e sua normalização como dado real, cuja tenebrosa evidência vem sendo dada pelos recentes desastres de Chernobyl e Fukushima. Por isso, diz Annie Le Brun, aquela tentação de fim de mundo que era induzida pelo desejo paradoxal de recriar o mundo foi embargada pela efetiva concretização da ameaça nuclear, cuja força de destruição parece ter se imposto ao nosso poder de negação.
O sonho de devastação passou do infinito para a finitude, a ponto de privar a catástrofe do devir imaginário que ela sempre teve e de suprimir “aquela parte de desconhecido implícito de que ela era a portadora”. Como consequência, ficamos privados da possibilidade de representar os perigos que de fato nos ameaçam e, impotentes para sonhar com o que nos excede, tornamo-nos resignados diante dos excessos que nos sujeitam.
Eliane Robert Moraes
“O sentimento da catástrofe é, sem dúvida, a primeira figuração da fenda do imaginário no mais profundo de nós.” Fenda constante, cujo desenho é uma forma de interrogar nosso destino, tanto quanto de responder a ele. Mas também um expediente paradoxal para enfrentar, tentando representá-las, as situações da mais extrema desordem ética.
“Precisamente por essa razão, o terremoto de Lisboa constitui um acontecimento capital, que, marcando o fim da concepção religiosa da catástrofe, se abre para a liberdade de um imaginário catastrófico pululante que se revelará o único meio de apreender um mundo em vias de escapar a toda compreensão. Essa cidade rica, acolhedora, pitoresca, mas ainda muito devota, repleta de igrejas e de conventos, de repente foi devastada pelo terremoto, ao qual se seguiu imediatamente uma inundação, e, por fim, ainda foi pilhada por seus próprios habitantes. A verdadeira catástrofe é que o impensável aconteceu, dado que Deus, a natureza e os homens revelaram-se de um só golpe totalmente diferentes do que havia se pensado que eram até então.”
“Estou convencida de que o sentimento da catástrofe nasce aí, nesse horizonte transtornado, a partir do momento em que tal sismo sem precedentes, despedaçando repentinamente balizas religiosas e filosóficas, faz surgir, catastrófica, a questão do sentido, cujas infinitas repercussões evocam, em reação, o excesso de imaginário. Questão verdadeiramente catastrófica: basta que ela se coloque para que, de súbito, desabem as construções éticas e os sistemas de representação.”
Annie Le Brun
Annie Le Brun (1941) é poeta e ensaísta francesa. Publicou importantes estudos sobre Sade e outros escritores como Alfred Jarry, Raymond Roussel, Michel Leiris e Aimé Césaire. Traduzida em diversas línguas, sua extensa obra vem sendo reeditada pela Gallimard desde meados dos anos 1990, incluindo a reunião de seus livros de poesia (Ombre pour ombre, 2005) e o recente ensaio sobre Victor Hugo intitulado Les Arcs-en-ciel du noir: Victor Hugo, 2012. Em 2014, assinou a curadoria da exposição Sade: Attaquer le soleil, que teve lugar no Musée d’Orsay em Paris e que resultou em livro homônimo.