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Era uma vez, em Königsberg, um professor de metafísica que falava a seus alunos da Alma, do Mundo e de Deus. Leu um dia um cético escocês, David Hume, “o mais engenhoso de todos os céticos” — e essa leitura levou a, como hoje se diz, a colocar-se em questão a questionar-se e interrogar a si próprio. Perguntou-se se era mesmo uma ciência o que ensinava. Perguntou-se (...)
Gérard Lebrun, In Hume e a astúcia de Kant
Nada — ou muito pouco — é preciso dizer para apresentar este livro, reunião dos escritos dispersos de Gérard Lebrun sobre a filosofia crítica de Immanuel Kant, tornando-os agora acessíveis à maioria do público, que não tem o hábito de consultar revistas especializadas. A relação com David Hume, o genial britânico ao qual uma frase famosa atribui o condão “de despertar do sono dogmático”; a descoberta da ilusão intrínseca, embutida na própria razão; a Dissertação de 1770, primeira colaboração da distinção sensível-inteligível; a enigmática “coisa em si”; a originalidade da “terceira crítica”, a Crítica do Juízo, que leva mais longe a reflexão transcendental, até chegar à reflexão sobre a reflexão... Com estocadas precisas, atacando cada um desses pontos, os textos que compõem o presente conjunto desenham um perfil renovado daquele que Nietzsche apelidou “o grande chinês de Königsberg” — o Regismontanense, como dizem alguns pedantes, reconhecendo sua importância universal, comparável à do Estagirita. Clara, rigorosa, malévola e bem humorada, a fina escrita de Gérard Lebrun vai pondo em evidência nas páginas áridas e aparentemente enfadonhas desse clássico, o que há de intriga, drama e paixão.
Sem hermetismo. Para todos os leitores. Eu queria que este volume, pelo qual me declaro inteiramente responsável, desde a idealização até a escolha e a seqüência dos ensaios, se chamasse Era uma vez em Königsberg... — primeira frase do primeiro ensaio; foi Lebrun que, com sua habitual modéstia e sobriedade, recusou esse título ingenuamente sensacionalista. De resto, aceitou cavalheirescamente todas as minhas sugestões, inclusive a publicação de dois textos esquecidos, anteriores, até, à elaboração de sua tese sobre Kant e o fim da metafísica — e que lhe despertaram emoções proustianas quando os apresentei para que os relesse. Prontificou-se, também, a escrever um prefácio — de que fomos privados por problemas de saúde. Entenda o leitor esta publicação também como uma homenagem e um testemunho da falta que nos faz esse brilhante pensador e gentil amigo.
Rubens Rodrigues Torres Filho