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Genial, louco, enigmático, profético, rebelde, ousado. José Joaquim de Campos Leão (1829-1883) era tudo isso. Mas antes da metamorfose mental que o transubstanciou em Qorpo-Santo, Campos Leão não passava de um pacato professor e um pressuroso homem público que chegou a se eleger vereador. Ele nasceu na vila do Triunfo, no interior do Rio Grande do Sul. Casou-se, teve quatro filhos, mudou-se para Porto Alegre. Aos 35 anos, alterações de comportamento levaram-no a ser acusado na justiça de alienação. Deu então início a uma guerra pela preservação de seus direitos que durou até a morte. Nesse conflito, Campos Leão perdeu todas as batalhas. Devemos sua Ensiqlopédia – obra caleidoscópica e incomum, publicada em nove volumes em 1877, onde foram incluídos os textos teatrais reunidos neste livro – à luta que travou contra a família, a sociedade e a enfermidade mental.
As peças que compõem o teatro de Qorpo-Santo têm uma longa história. Escritas na estranha grafia proposta pelo autor, foram todas fruto de um período de febril criatividade de Qorpo-Santo, que se estendeu de 31 de janeiro e 16 de maio de 1866. Uma década mais tarde chegaram ao prelo no volume IV da Ensiqlopédia. Levaram quase um século para deixar o papel e tomar forma no palco. Consideradas por seus contemporâneos obras de um insano, caíram no esquecimento, do mesmo modo que toda a produção de Qorpo-Santo, até serem resgatadas desse buraco negro em meados do século 20, devido ao esforço de intelectuais e artistas gaúchos.
No universo delirante destes textos teatrais, Qorpo-Santo mostrou homens e mulheres presas de contradições terríveis. Elaborou tramas que envolviam adultério, homossexualidade, violência, inconformismo. E isso num momento em que o grande sucesso do teatro em todo o mundo era A dama das camélias, de Alexandre Dumas Filho, com sua dramaturgia bem-comportada e a esmagadora vitória da moral burguesa ao final. Na distante e provinciana Porto Alegre, Qorpo-Santo inventava um teatro feito de irreverência, arbitrariedade, absoluto desprezo pelas convenções. Hoje sou um, amanhã outro, As relações naturais e Um credor da Fazenda Nacional e outras muitas de suas peças eram animadas por furiosa oratória que fustigava as convenções e investia contra o grupo social que Dumas consagrava e a cujos preceitos se curvava.
A presente edição do teatro de Qorpo-Santo é enriquecida por um ensaio/prefácio de Eudinyr Fraga, especialista no assunto. Fraga, professor que já dedicou um livro ao escritor gaúcho, sintetiza aqui com finura e grande precisão a trajetória de José Joaquim de Campos Leão. Também recoloca os pingos nos ii ao provar por a+b que, ao contrário do que se afirmou durante décadas, o teatro de Campos Leão não tem a ver com o teatro do absurdo de Eugène Ionesco e Samuel Beckett, mas sim com o surrealismo de Breton, Duchamp e companhia. No mundo dos sonhos recuperados, do mergulho no inconsciente, é que deve de ser encaixado Qorpo-Santo, um homem atormentado, humilhado e ignorado por seus contemporâneos, que se vingou de seus opressores, homens “normais”, hoje esquecidos, com uma obra que não apenas resistiu com bravura à passagem do tempo como, a cada dia, soa mais intrigante, desafiadora e vital.
Alberto Guzik