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CALIGRAFIA/TORTOGRAFIA
A arte contemporânea, ao evocar o mundo, constata suas transformações. A arte abstrata, ao liberar a arte da figuração, libera, ao mesmo tempo, a linguagem verbal da descrição. Mallarmé enunciou a "crise do verso", era necessário destruir o verso alexandrino, destruir qualquer verso e destruir também o poema em prosa. A destruição do quadro veio a seguir, pois o artista expõe uma moldura vazia.
Esvaziou a imagem de suas referências naturalistas para apresentar a realidade como inesperada, o desconhecido e o abstrato, assim eram as rayografias de Man Ray e de Duchamp. Os logogramas do poeta Dotremont procuravam uma unidade de inspiração verbal-gráfica e o pintor-poeta Camille Bryen dizia que "desenhava para não escrever”.
A lagartixa anuncia um mimetismo cartográfico e a glossolalia conduz à inversão da linguagem. Nesta inversão de valores da simbologia religiosa aparecem os emblemas: o lírio seco e a salamandra alada. Mapa miniado, iluminura, livro de artista.
A caligrafia, medieval ou oriental, associava pintura e escritura e os poetas modernos exploram as propriedades miméticas da grafia ou da tipografia. O moderno é fazer aparecer a um só tempo o insólito, o estranho e o maravilhoso; "extrair a beleza do mal”, disse Baudelaire. Para o poeta francês, "trata-se de tirar da moda o que esta pode conter de poético no histórico, de extrair o eterno do transitório”.
A “iconicidade” de uma linguagem não é só plástica e a não-linearidade da linguagem poética faz com que as associações transbordem o limite da frase.
O primeiro Livro de Artista surgiu da associação entre um poeta e uma pintora: A prosa do transiberiano e da pequena Jehanne de france, em 1913, de Blaise Cendrars e Sonia Delounay — “representação sincroma e pintura simultaneísta, para ler de uma só vez”.
A Tortografia de Eliana Borges e Ricardo Corona é um livro de artista que surge de uma colaboração de mais de uma década de trabalho e reflexão. Para Balzac, "ver, é tudo ver”, seja a superfície ou a profundidade, o direito ou o avesso, o sim e o não, para Eliana e Ricardo “ver é pensar", um jogo de jamais se refugiar em uma só dimensão.
Eles se servem do desenho e da linguagem verbal para passar de um ao outro sem hesitações, para fazer viver um espaço que eles não param de criar, de traduzir, de transformar, de induzir para depois inverter a indução.
O observador é então obrigado a organizar, desfazer, religar, comparar, circular de um ponto a outro, num processo de construção e desconstrução simultâneo a um pensamento vivo. Como em Prosa do Transiberiano, é feito para ser visto e ser lido a um só tempo e, como ele, e também uma metáfora de viagem, de cartografia a ser decifrada a partir de um pensamento que se define por um exercício concreto da vista, da visão. Utilizar a vista como um modo de conhecimento essencial do mundo, a tal ponto que se serve da linguagem para fazer aparecer o espaço através do jogo de palavras, do discurso fragmentado, da não-linearidade, e que deve ser reconstruído pelo leitor.
“... do meteorito eu fico com o risco...”.
Jogo de manipulação, de descoberta e de decifração, mas a lagartixa de asas douradas continua a guiar o leitor- observador através dos palimpsestos, onde um texto se sobrepõe a outro, uma imagem de sobrepõe a um texto ou uma imagem se sobrepõe a uma imagem. Não são dissimulados, mas querem se deixar ver pela transparência, pelas interferências gráficas pela fome de ler.
De uma “estética da fome” a uma “estética que tem fome” e, para concluir, aparecem de repente o verso de Mallarmé poeta: “Eu cantarei o homem que vê pois, estando neste mundo, ele o observa, o que ninguém mais faz”.
Fernando A. F. Bini