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Absurda leveza que te faz afundar
E não é a morte.
Cumpres tua descida calado
(Uma palavra por descuido
Seria amputar a verdade).
Náufrago do tempo,
Tuas horas transbordam.
Dentro da lágrima,
Imensidão, já não choras.
Estrelas e estrelas,
Copulam a sede e o engenho
De que te alimentas
Como nunca te alimentou
O gosto da carne.
Tua face atônita
Se existisse uma face,
Tuas costas nuas,
Se a nudez fosse do corpo.
Um sorvedouro
Onde a paz dos contrários,
Treva alvorada.
Fecundado, flutuas.
É a lei da graça.
Mariana Ianelli escreve, basicamente, uma poesia do primordial: a solidão primeira, o jardim sem outono, aquele tempo intransitivo fora do mercadomas perene em todos nós. Nos livros anteriores, como neste admirável Treva Alvorada, os versos parecem nascer em algum ponto da imaginação literária onde o lirismo se entrelaça ao mito, à religião, à filosofia para aludir a experiências originárias com significados há muito abolidos ou empalidecidos pela vida moderna.
Já no título defrontamos a mais primitiva das oposições míticas – noite/dia, com expansão metafórica para morte/renascimento, alienação/consciência – e essa ambiguidade atravessa o texto sob figuras diversas. É assim que reencontramos, em épocas e geografias indefinidas, Narciso, Abel, cenários antigos e passagens bíblicas, cada um deles envolvido com dilemas ou esperanças cujo drama, em roupagem inédita, revivemos. A deserção, por exemplo, do filho pródigo, com sua “pele macia/ sem rastro de batalha”, vem precisamente de que “não sabia errar”. Pelo equívoco, ele ascende à humildade, para enfim retornar à casa paterna.
A errância humana entre sombra e luz, aliás, é o tema da coletânea. Estamos entregues à inquietude, ao desconhecimento, tendo a morte por horizonte. Esse aparente pessimismo, no entanto, é para Mariana um domínio de luta com sentimentos e gestos justamente primordiais como a compaixão, o silêncio, as alegrias do corpo ou a aliança com o absolutamente Outro, também conhecida por fé. Na vitória ou na derrota, palmilhamos a “revanche da galhardia”, pela qual “é inútil desafiar o pó/ E, contudo, desafia-se”. Ou então, quando alcançamos a “paz dos contrários”, reina a “Treva alvorada”, onde “Fecundado, flutuas,/ É a lei da graça.”
Narrativos, portanto mais ágeis, os poemas provocam por algum mistério uma impressão de leveza e profundidade. O cuidado com as palavras é severo mas não exclui, antes reforça, a espontaneidade. Os tons variam do lamento ao cântico, conforme a emoção em jogo. E à potência de reflexão lírica da autora, que percebe coisas assim: “Era um frescor de água profunda/ A tentação do esquecimento”, vêm se associar imagens reveladoras de um universo em contínua radiância, como no verso “A maçã resplandecente no esterco”. Tudo somado, temos a síntese de uma originalidade feita pensamento poético em sua mais forte expressão.
Escrito em 2009 durante os meses de enfermidade e passagem do avô da poeta, o pintor Arcangelo Ianelli, Treva Alvorada contém meditações ora pungentes, ora libertárias sobre a morte. São lições de finitude que pertencem à sua decisão, ultracorajosa face à estética contemporânea, de dialogar poeticamente com o sagrado, que vai deixando este mundo seduzido pela própria desintegração. Curiosamente, contra toda a aprendizagem, o último poema termina com a boutade: “Aqui não se morre mais.” Legítima ironia, mas ainda primordial, é no homem o desejo de imortalidade.
Jair Ferreira dos Santos