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Em 1885, contrariando os biógrafos por antecipação, Freud destruiu todos seus escritos anteriores a essa data, na expectativa de uma grande mudança que recompensaria seus esforços. No entanto, foi impossível evitar que ficassem restos, significantes cuja insistência só poderia conjurar, analiticamente, muitos anos mais tarde.
Por isso, se o affair da cocaína foi um fracasso que Freud não queria nem lembrar, a invenção da psicanálise acabou sendo, por fim, seu triunfo sobre o esquecimento.
Sob a forma de um prosaico pó cristalino, devastador como uma praga, um fantasma percorre os continentes. A presença diária da cocaína nas manchetes talvez trivializasse sua incidência no mundo contemporâneo, mas as questões que seu uso tão difundido levantam não podem ser banalizadas: nem a vertiginosa escalada da quantidade de toneladas produzidas e traficadas, nem os milhões de usuários que sustentam seu consumo. Que mal-estar na civilização compensa, para tantos, seu efêmero conforto? A vida moderna não seria suportável sem paraísos artificiais?
Cem anos atrás, poucos conheciam os efeitos dessa substancia, e menos ainda acreditavam nela como uma panaceia. Sigmund Freud foi um deles, no inicio de sua carreira. Muito antes de empreender a aventura psicanalítica, este jovem médico vienense, almejando ser famoso por meio de uma descoberta cientifica, foi um dos mais dedicados divulgadores da droga no final do século passado.
Espirito racional e boas intenções levaram Freud a experimentar tanto a planta de coca quanto seu alcaloide, para concluir que seus efeitos seriam benéficos se aplicados em diversas especialidades da medicina. Como consequência, promoveu sua utilização irrestrita e, além de prescrevê-la aos seus pacientes e colegas, serviu-se dos seus poderes por um bom tempo.
Aconteceu, porém, o imprevisível: a cocaína extrapolou os meios hospitalares, disseminando-se no cotidiano dos espaços urbanos. A partir de então e progressivamente, como um flagelo, a humanidade convive com uma nova psicopatologia cultural.
Freud, entretanto, desvinculou-se do assunto rapidamente, partindo à procura de novos horizontes. Teve a fama ao alcance da sua mão, mas o preço do sucesso era controvertido demais, para manter-se no foco dos holofotes, com um saldo maior de acusações que de reconhecimento.
Contudo, esse episódio deixou marcas indeléveis no inconsciente freudiano, retornando em sonhos, cartas e recordações que, devidamente analisadas e interpretadas, constituem um dos estratos menos conhecidos da pré-história da psicanálise, na época em que seu criador sequer podia imaginar qual seria seu destino. Nos dias de hoje, completando cinquenta anos da sua morte, uma maneira de prestar-lhe homenagem é jogar alguma luz num capítulo censurado de sua vida.
Oscar Cesarotto é psicanalista e colaborador do Instituto Sigmund Freud. Autor do livro NO OLHO DO OUTRO (Max-Limonad, 1987); escreveu em colaboração com Márcio Peter de Souza Leite O QUE E PSICANALISE 2° VISAO (Brasiliense 1984) e IAQUES LACAN - ATRAVES DO ESPELHO (Brasiliense, 1985).