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Dizem os mestres da dramaturgia que bom personagem teatral é aquele que não se faz revelar pelo nome, mas por sua ação. Na peça Wittgenstein!, dada a importância do protagonista, esta asserção cai como uma luva. Ludwig Wittgenstein (1889-1951) foi um dos mais importantes e conturbados filósofos do século 20, mas emprestado ao teatro surge como um professor que proferirá uma palestra a uma plateia de alunos e/ou interessados — nós, o público presente.
De saída, comunica: “Vou falar de fatos que consistem ser o mundo e a linguagem do mundo”. Prossegue asseverando que “nossa linguagem é um emaranhado confuso”, que “caminha no vazio”. O professor-filósofo atesta, portanto, tentar buscar “sua clareza”, ainda que para tal objetivo seja “preciso antes que os problemas filosóficos desapareçam”. Assim, somos convidados a enveredar pelos pensamentos do conturbado pensador, que influenciou grande número de artistas modernos e contemporâneos, como o dramaturgo Peter Handke (Insulto ao Público e Kaspar) ou o romancista Thomas Bernhard (O sobrinho de Wittgenstein) — para citarmos apenas dois grandes nomes.
No caso de handke (1942), é tão notório seu fascínio pelas ideias de Wittgenstein, sobretudo os estudos da linguagem como formação da base da realidade, que muitas de suas peças foram considerados ilustrações das ideias do filósofo austríaco. Optando pelo monólogo em primeira pessoa, gerado em tempo real, acabamos deparando com particularidades da vida do filósofo, sua dor pelo suicídio de três irmãos, seu envolvimento com um modo de vida espartano — a ponto de distribuir a maior parte de sua herança entre intelectuais e familiares, sob a alegação: “Eu queria me ver nu, entre as coisas, para entender melhor nossa miséria” — , assim como os paradoxos que o encaminharam a rever a grande obra de sua vida, o Tratado lógico-filosófico, conjunto intrigante de “obscuros aforismos”. Ainda que a duração da palestra vise a ocorrer sem saltos, respeitando a unidade do tempo presente, o autor recorre inteligentemente ao tempo paralelas, da memória, bordando, assim, na corrente narrativa do texto, situações do passado representadas pelo próprio filósofo, sejam elas saídas das salas de aula em Cambridge, sejam da casa onde viveu até a adolescência, sejam, ainda do front de batalha da I Guerra Mundial, na sua cabana na Noruega ou no hospital londrino no qual trabalhou como técnico de laboratório. Como indica o autor, tudo deve se entrelaçar como numa sequência de sonho. Outra característica que merece destaque — e vale sublinhar que se trata do primeiro texto teatral do escritor, poeta e filósofo Contador Borges —, é o entrelaçamento entre filosofia e dramaturgia.
Pode-se afirmar que os dois campos se intercomunicam de forma consistente nas oito partes que constituem o texto. Mas se valorarmos ambos os domínios, também poderemos afirmar que Contador Borges soube como colocar a filosofia a serviço do teatro, e não o contrário, o que poderia tornar a peça por demais hermética, mesmo maçante. Desta constatação, nasce um trabalho sob a égide da verossimilhança, que segundo Aristóteles, em A poética, é ter a capacidade de escrever sobre o que poderia ter acontecido entre pessoas, pois o que aconteceu pertence ao campo da História. Em Wittgenstein!, há cenas que poderiam, de fato, ter ocorrido, mas sob a tal forma e medida que sua biografia em nenhum momento é traída. Ao longo do percurso, deparamos com um personagem que enfrenta conflitos e ambivalências, até o momento em que o protagonista, depois de “dizer tudo que deve ser dito”, busca a natureza do silenciar: “Inventei uma lógica para o mundo... criei tabelas de verdade... jogos de linguagem... mas eu prefiro mesmo a poesia. Quero a fórmula da cegueira! O silêncio. O que não se pode falar deve-se calar”.
Marici Salomão